Esse foi o primeiro dia dos pais do Jr, com direito a babada do filho logo pela manhã e tudo. O quê? Vocês acham que só quem tem cachorro é que pode se dar ao luxo de ser acordado por uma bela babada? Então estão por fora.
Ganhou presentinho, cartãozinho, tudo como manda o figurino. De quebra, fez um vôozinho e pousou pouco depois de Paraíso. Enfim, um domingo feliz, principalmente para um pai voador.
Enquanto ele estreava, meu pai já passava do seu septuagésimo Dia dos Pais. Para ele, eu desejaria um daqueles almoços de domingo de comercial de macarrão ou daquele último da companhia telefônica: mesa cheia, rodeada de filhos, a velha companheira ao lado, sorrisão no rosto. Mas parece que esse não é o seu desejo. Passou o dia calado, num canto do sofá, nem sequer se deu ao luxo de abrir o único presente que recebeu - o meu. Único, porque minha mãe e os outros se cansaram de ouvi-lo dizer que não gostava de ganhar presentes e, assim, desistiram de tentar agradá-lo. Na verdade, nem sei dizer porque eu não desisti também. Sei lá, vai ver que sou teimosa mesmo.
Vira e mexe, eu me pergunto o que falta a ele. Vindo de uma família humilde, batalhou a vida toda. Conseguiu criar seus seis filhos e formar cinco deles. Tem uma esposa dedicada e maravilhosa, tem sua casa e seu carro. Poderia se dizer vitorioso, mas não se acha, não se contenta e às vezes acho que ele se esforça ao máximo para ser infeliz.
Olho para trás e tento enxergar onde foi que ficou aquele pai engraçado que eu achava a cara do Raul Gil. Aquele que me botava no colo e me deixava acreditar que era eu quem estava dirigindo a velha Bandeirante. Aquele que jurava que tinha a maior pança do mundo pois havia engolido uma melancia inteirinha. Que se espremia atrás das portas só para nos assustar. O homem que amava os maveriques e mustangs, que trazia sanduíche de filé no pão francês pra repartir com os filhos. Que nos levava para tomar caldo de cana "na estrada", todo santo domingo. Que comprava tantos pastéis de queijo quanto eu conseguisse comer, para desespero da Mamãe. Que me deu minha primeira bicicleta e meu primeiro - e único - contrabaixo, que eu preservo até hoje.
Das poucas lembranças que tenho da minha infância, as que se referem ao meu pai tem cheiro de couro e de óleo diesel - esse que até hoje, em meio ao caus do trânsito, me transporta ao passado. É das visitas repentinas no meio da semana, devido a algum percalço de trabalho que o fizesse deixar o seu posto, que eu tenho mais saudades. Era quando eu, adormecida no sofá, sentia meu pequeno corpo ser erguido por mãos fortes, de encontro ao frio toque do couro do casaco que o protegia da noite lá fora e o cheiro do óleo diesel que a Toyota Bandeirante impregnava em quem a adentrasse. E quando amanhecia, ele não estava mais lá. Mamãe ao fogão fazendo o café dizia que ele já havia ido embora. No meu imaginário infantil, ficava como um sonho, de um pai que havia dirigido quilômetros e quilômetros só para carregar sua filha para a cama.
Passaram-se os anos e com eles as demonstrações de afeto, os carinhos, as brincadeiras. Como se por decreto, aquele que cresce não tem mais direito a nada disso. E a distância foi se instalando, crescendo, devorando como cupim que ataca uma relíquia de família. Ficou aquele vazio em vida, uma saudade de quem ainda nem partiu.
É triste, muito triste. Mas é a vida e assim são as pessoas. Muitos vêem a beleza nas pequenas coisas e disso tiram seu fôlego para viver. Outras precisam buscar nas grandes seu incentivo. Mas, na futilidade e na superficialidade nas quais tudo o que é pretensioso se encerra, sentem-se cada vez mais incompletas, cada vez mais insatisfeitas. E seguem assim, de mal com a vida, achando que tudo aquilo que conquistaram não foram dádivas, mas sim, nada mais do que um pagamento pelas argruras que a vida trouxe e traz.
Porém, como quase tudo no mundo, pessoas assim tem salvação. Digo isso, porque em meio a tanto ressentimento da vida, presenciei algo de se emocionar. Nesse domingo de Dia dos Pais, vi quando meu pai pegou carinhosamente meu filho - que brincava no chão da sala - em seus braços . Sentou-o ao seu colo e nesse instante algo mágico aconteceu: a nuvem escura descobriu um rosto risonho, um semblante sereno. Naqueles olhos verdes vi um menino de pés descalços correndo livre pelos campos. Vi uma felicidade tímida, um amor tão grande que só a inocência das crianças é capaz de despertar. Naquele momento, algo dentro de mim desejou ser criança novamente, só para desfrutar daquele olhar. E, no momento, em que eu quase invejava ao meu próprio filho, meu pai levantou os olhos e sorrindo me disse: "Ele se parece muito com você quando tinha essa idade."
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